domingo, 14 de junho de 2009

Estado de São Paulo: reflexões sobre ética em risco

O Governo do Estado de São Paulo distribui material didático para as escolas da Rede Estadual de Ensino com erros graves.

O material didático, Caderno do Professor e Caderno do Aluno da disciplina de Filosofia – elaborado pelo Governo do Estado de São Paulo – contém erros graves. O principal erro consiste em uma distinção equivocada entre moral e ética. Para os autores deste material didático “a moral define o que é bom e o que é mau, antes das ações, e que a ética define o que é bom e o que é mau segundo as circunstâncias. (...)”[1]
Em primeiro lugar, é necessário esclarecer que uma das diferenças existentes entre as noções de ética e de moral é de ordem etimológica. A palavra “moral” é de origem latina e deriva do termo “mores” (costumes/caracteres); a palavra “ética” é de origem grega e foi formada a partir do termo “éthos” (costumes), “donde ter se formado o seu nome ética [êthiké] por uma pequena modificação da palavra hábito [éthos].”[2] Dessa forma, a preferência por uma das expressões destacadas é uma questão de escolha motivada pela tradição filosófica ou por questões terminológicas.
No que se refere à tradição filosófica, devemos aos gregos o início da sistematização das reflexões racionais acerca dos princípios que determinam a ação humana. E, como motivador terminológico, podemos citar o fato de determinadas correntes da filosofia moderna e contemporânea considerar um dos termos mais apropriado para as suas considerações conceituais. Contudo, os autores do material didático do Estado de São Paulo realizaram uma divisão mecânica e arbitrária entre o que não pode para a “moral” e o que pode para a “ética” dentro do campo das circunstâncias.
Ora, se a ação humana é orientada por certos princípios, é importante esclarecer que a avaliação das pessoas, no momento da ação, obedece a critérios que formam um conjunto de valores construídos com base em pressupostos empíricos ou racionais. De maneira geral, pode-se dizer que a partir de determinadas concepções de mundo e da necessidade de pensar o plano de nossas ações, surgiram as principais correntes da ética que, conforme Habermas, possuem três posições predominantes. “Até os dias de hoje, as discussões teóricas sobre a moral são determinadas pelo confronto entre três posições: as argumentações transcorrem entre Aristóteles, Kant e o utilitarismo.”[3] Mas, infelizmente, os responsáveis pelo Caderno de Filosofia do Estado de São Paulo ficaram limitados a uma visão estreita e distorcida do que seria a ética, colocando em risco as reflexões sobre tal eixo temático nas escolas públicas do Estado de São Paulo.
Para destacar e analisar os erros, contidos neste material didático, é necessário recuperar algumas das correntes da ética. A nossa trajetória tem como ponto de partida a ética aristotélica que é fundamentada na virtude, definida por Aristóteles como a atitude do homem ponderado que, entre dois extremos, escolhe o caminho do meio. A virtude “ocupa a média entre duas extremidades lastimáveis, uma por excesso, a outra por falta” (Aristóteles). Nessa perspectiva, ações que prejudicam a comunidade (a polis) não devem ser praticadas e, portanto, as ações dos cidadãos devem ter como finalidade o “bem comum” ou o bem público, por esta razão, a ética defendida por Aristóteles é classificada como uma ética comunitária.
Outro momento importante da história do pensamento ético, por assim dizer, é o apresentado pelo filósofo alemão Kant, que usa o conceito razão prática para designar moral. A partir de uma concepção deontológica, ele considera que a ação humana deve ser fundamentada no dever. É importante salientar a relação estabelecida por Kant entre o dever e a boa vontade, definida por ele como um princípio da razão. O dever não é, portanto, um fator externo expresso em algum código de leis ou mandamento de alguma instituição social. Agir com base no dever é seguir os princípios da razão, isto é, ser autônomo. Em sua obra Fundamentação da metafísica dos costumes, Kant afirma: “Age de tal modo que a máxima de tua ação sempre e ao mesmo tempo possa valer como princípio de uma legislação universal”. Em relação a tal perspectiva, por exemplo, não devemos mentir em nenhuma circunstância, pois se um indivíduo mentir e isso for feito por todos, não haverá confiança. Se um indivíduo estabelece como máxima matar e se isso for universalizado, a humanidade entrará em extinção.
Contudo, no material didático do Estado de São Paulo está expresso como definição de Ética: “Não será antiético mentir, por exemplo, se com isso você estiver salvando a vida de um inocente.”[4] A conclusão com base neste argumento é: se for para salvar uma vida, é ético mentir. Salientamos que esta definição de ética feri por completo os princípios defendidos pela ética deontológica, pois com base nas teses de Kant, as nossas ações devem ser guiadas pelo imperativo categórico.
Contrariando o conjunto geral da ética, é utilizado na página 17 do Caderno do Aluno para exemplificar respectivamente moral e ética os seguintes argumentos: “Não se pode roubar”[5] e “Será antiético se prejudicar alguém e se for feito sem ter a urgência de salvar uma vida.”[6] Ora, a conclusão com base nestes argumentos é: se for para salvar uma vida, é ético roubar.
É importante ressaltar que se um indivíduo roubar com a justificativa de salvar uma vida, e esta atitude for universalizada, não haverá segurança. Salientamos que a 23ª Vara Criminal de São Paulo negou, no dia 21 de março de 2006, o pedido de liberdade provisória movido em favor de Angélica Aparecida de Souza Teodoro, 18 anos, presa em São Paulo em novembro de 2005 sob acusação de roubar um pote de manteiga, no valor de R$ 3,20. A defesa da jovem alegou que "o furto/roubo famélico se amolda quando o 'é praticado por quem, em estado de extrema penúria, é impelido pela fome, pela inadiável necessidade de se alimentar'". Contudo, a Justiça de São Paulo não aceitou a alegação da defesa e a jovem permaneceu presa, só conseguindo liberdade provisória através de liminar concedida pelo ministro Paulo Gallotti, do Superior Tribunal de Justiça em Brasília.
Para evitar, então, roubos famélicos, devemos refletir e agir para criar redes de proteção social. E, quando a ação é limitada pelas leis morais, é possível pensar na felicidade universal, pois seguir os princípios morais pode proporcionar não só o bem-estar para si, como também ser o responsável pelo bem-estar dos outros.
Mas, se na ética deontológica não há justificação, por exemplo, para o ato de mentir, o mesmo não procede com o utilitarismo. Segundo Peter Singer (um dos expoentes do utilitarismo contemporâneo), em circunstâncias normais é errado mentir. Porém, ele argumenta que na Alemanha nazista seria correto mentir para Gestapo com o intuito de proteger uma família judia. E, diante de situações estabelecidas pelos horrores da guerra, os indivíduos fazem avaliações e escolhas que têm como base princípios universais ou princípios míninos. Contudo, “quando o interesse próprio tem de ser posto em harmonia com o alheio, os discursos pragmáticos apontam a necessidade de compromissos. Nos discursos ético-políticos, trata-se da elucidação da identidade coletiva, que tem de deixar espaço para a multiplicidade de projetos individuais de vida. Nos discursos prático-morais, tem-se de examinar não apenas a validade e adequação dos mandamentos morais, mas examinar também se são cabíveis.”[7]
Entretanto, a postura reducionista dos autores do material didático de filosofia do Estado de São Paulo, reduziu a ética a uma única definição. E, com base neste reducionismo, eles indagam e respondem: “Onde se aprende a reflexão ética? Do ponto de vista da ética, saber o que é mau ou o que é bom depende da situação (...)”.[8] Mas, para as pessoas que se dedicam às questões filosóficas, esta não é uma boa resposta. Ficamos, então, com a postura de Singer que declara que o utilitarismo não é a única posição digna de consideração.

Mauro Antônio do Nascimento

[1] FINI, Maria Inês; MARTINS, Adilton Luis; CRISTOV, Luiza; MICELI, Paulo; SILVEIRA, Renê José Trentin. Caderno do Professor: filosofia: ensino médio - 2ª série, volume 1/ Secretaria da Educação. São Paulo: SEE, 2009, p. 19.
[2] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril Cultural, 1973. Coleção “Os Pensadores”. p. 267.
[3] HABERMAS, Jürgen. Para o uso pragmático, ético e moral da razão prática. Estudos Avançados, São Paulo, v. 3, n.7, p. 4-19, 1989, p. 4.
[4] FINI, Maria Inês; MARTINS, Adilton Luis; CRISTOV, Luiza; MICELI, Paulo; SILVEIRA, Renê José Trentin. Caderno do Aluno: filosofia: ensino médio - 2ª série, volume 1/ Secretaria da Educação. São Paulo: SEE, 2009, p. 17
[5] Ibidem. p. 17
[6] Ibidem. p. 17
[7] HABERMAS, Jürgen. Para o uso pragmático, ético e moral da razão prática. Estudos Avançados, São Paulo, v. 3, n.7, p. 4-19, 1989, p. 18.
[8] FINI, Maria Inês; MARTINS, Adilton Luis; CRISTOV, Luiza; MICELI, Paulo; SILVEIRA, Renê José Trentin. Caderno do Professor: filosofia: ensino médio - 2ª série, volume 1/ Secretaria da Educação. São Paulo: SEE, 2009, p. 20.

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